“Tô com muito medo de botar a mão nesse lixo contaminado”, conta catadora que perdeu tudo em Porto Alegre
O Pimp My Carroça convocou parceiros da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, para registrar o perfil de catadoras e catadores atingidos pelas inundações na capital gaúcha. Com as presenças e registros de Negra Jaque, DKG e Alass Derivas, essas pessoas contaram suas histórias e compartilharam suas sensações e perspectivas deste momento histórico na luta pela justiça climática numa das principais cidades do país.
Duas dessas pessoas são Elaine da Silva e Jacson Carboneiro (filho do Antônio Carboneiro, que também está nessa série), casal morador da Vila dos Papeleiros, em Porto Alegre/RS, que mantém vivo o Museu de Resgates, responsável por parte da memória da comunidade e da região. Catadores há quase toda a vida, são pais de duas crianças e perderam tudo na enchente. Hoje, estão na luta para resgatar seus bens materiais e a força da vila para reconstruir suas vidas.
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Foto: Alass Derivas (@derivajornalismo / @pimpmycarroca).
“Tem quadro, violão. É tudo da rua, reciclagem, alguém jogou fora e a gente reciclou, trouxe pra cá. Meu marido sempre foi louco por coisa antiga, começou com moeda e dinheiro, no começo eu não gostava, mas aí comecei a trazer pra ele e tivemos a ideia do Museu. Mesmo com a enchente estamos trazendo coisas pra cá”, explica Nani sobre o Museu de Resgates.
Elaine da Silva - “Nani”
Se apresenta
Elaine da Silva Rodrigues, tenho 29 anos, vim pra vila com 13 anos, e já comecei a trabalhar com Seu Antônio na reciclagem. Comecei a namorar o filho dele, casou e temos 2 filhos. Gosto da reciclagem, já tentei outras coisas, já trabalhei em paradaria, mas a gente é nosso patrão, reciclagem é tudo, meu ganha pão.
Sentiu vergonha?
Sou carão, boto a cara. No começo era novinha, tinha vergonha, mas depois. Eu não me adaptei nas reciclagem da volta. A gente ganha muito pouco em cooperativa e trabalha muitas horas, e tem lugar que nem dá almoço. Eu tinha que vir pra casa, levar as crianças pra escola e voltar pra cooperativa. Com carrinho pra mim era mais vantagem, ganhava tempo e mais dinheiro no caso.
Como mulher?
Não tenho tempo pra mim. Eu nem penso em me arrumar. Penso em conquistar coisas para as crianças, que sejamos inspiração pra eles. Sempre pra frente, sendo do lixo ou não, o que importa é estar bem. Várias questões, apontam o dedo, por que não trabalha ali? Não estamos pedindo nada, estamos pegando o que tacam fora. É diferente, a gente é muito discriminado. Claro que tem pessoas boas, na Zona Sul tinha uma cliente que me ajudou muito, dinheiro, fogão, e que me viu puxar carrinho com as crianças. Mas é poucas pessoas, tem gente que nem olha.
Relação com as crianças?
Minha filha é igual o pai - povão, fala com todo mundo. O filho é mais tímido, não gosta de reciclagem. 8h da manhã no SASE, foi afetado na vila marisca, banda eps, instrumentos musicais, perdeu tudo, tudo boiando. O colégio não sei se tá afetado, mas eles estão sem aula há um tempão, estão sentindo muita falta. Chegavam almoçados, quebração de galho total. Chegavam 12h, arrumava pro colégio, 17h30 voltavam pra casa. Nunca deixei na rua, eu trabalho e o pai delas também, não tinha quem cuidasse.
E a rotina agora?
Eles estão dentro do telefone. Pra eu organizar as coisas. Desliga o telefone parece que os monstrinhos saem do colchão. A rotina tá difícil, to com os cabelos brancos. Pra eles também, eles não tem o que eles tinham antes, perderam a rotina, tá difícil psicologicamente. Minha filha está bem afetada, quando vai voltar, quando vai passar. Ela não queria vir, queria ficar na tia dela. Mas eu falei, a gente tem que voltar, senão não consegue nada de volta, temos que limpar. Eu não consigo deixar eles nlá, então limpei embaixo e trouxe eles.
Tu saiu de casa e ficou onde?
Fiquei em Viamão, na casa da minha cunhada. Me acolheu em duas pecinhas de madeira.
E como saíram?
Saímos por conta própria, botou as criança na cacunda, duas mochilas de documento e chegamos ali na voluntários. Daí Deus é tão maravilhoso que chegamos na Farrapos e um cara parou com a caminhonete de luxo e perguntou onde íamos ficar. Ficamos no apartamento do Cristiano, daí largaram nois aqui. No apartamento me senti muito sufocada. Todo mundo molhado, sem roupa pra colocar, medo de mexer nas coisas dos outros. No dia seguinte fomos pras gurias, tudo muito caro. Sem nada mesmo. Tudo que estou aqui nada é meu, tudo foi ganhado. E ainda, muita coisa que ganhou, muita roupa suja, manchada, molhada. O que eu tenho é duas muda de roupa, sapato pra botar no pé, é o que eu vim. Foi bem difícil.
Sem trabalhar?
Sim. To louca. To com muito medo de botar a mão nesse lixo. Contaminado. A gente não pode reciclar na rua, tem que trazer pra comunidade pra poder vender. Com as crianças na volta eu tenho muito medo. Eu tenho toxoplasmose que tem nessa água. Sou cega de um olho por causa dessa doença. Quando eu peguei covid em abril do ano passado, ativou a doença e eu perdi a visão do olho. Peguei doença na reciclagem, alveite, uma bactéria no olho que ficou sequelas e piorou. Por conta disso também eu não consigo serviço. Fiz o curso de cuidadora de idoso, pra tentar sair da vida da reciclagem, mas não deu certo. Eu me bato em tudo, sou muito atrapalhada. Então vou ficar na reciclagem mesmo, é isso. Várias dificuldades na vida da gente.
Tudo que eu achava na reciclagem trazia pro Jacson, ele via o que ele queria, comprava umas coisa de ambulante, e fomos juntando. Ele fez um projeto com o Cristiano Santana, que entrou no projeto do Museu e da Biblioteca. Tem umonte de coisa. Lá em cima tem mais coisas.
Tem quadro, violão, tem tudo. Aqui o Seu Antônio, aqui o Jacson. Esse é o Cristiano Santana, fotógrafo, também botou a mão no carrinho. É tudo da rua, reciclagem, alguém jogou fora e a gente reciclou, trouxe pra cá. Meu marido sempre foi louco por coisa antiga, começou com moeda e dinheiro, no começo eu não gostava, mas aí comecei a trazer pra ele e tivemos a ideia do Museu. Mesmo com a enchente estamos trazendo coisas pra cá.
Minha geladeira no chão, a máquina não existia mais, que tudo boiando, às panela. O gato estava apavorado, ontem ele conseguiu botar o pé no chão. Os cachorros do meu sogro foram resgatados, mas não sabemos quem foi. Que medo, quando falaram que tinha jacaré. Eu vim por causa dos bichos, não vou deixar eles morrerem de fome. Mas foi apavorante, não vou esquecer nunca, é uma cena que vai morrer comigo, foi desesperador, espero que eles façam algo por nós. Foi extremamente. Tudo que tínhamos perdeu. Salvamos o museu porque ele está aqui em cima, senão não tinha o que salvar.
Foto: Alass Derivas (@derivajornalismo / @pimpmycarroca).
Jacson Carboneiro
Jacson Carboneiro com muito orgulho, reciclador, papeleiro, sonho em ser fotógrafo, trabalhar com imagem. 33 anos e aqui há mais de 23 anos.
A vida toda trabalhando em torno da reciclagem. Trabalhei com restaurantes, não deu certo.
Aqui não deu pra tirar nada, só os filhos. Pensar em salvar vidas, não imaginamos que ia chegar nessa altura. O que estava aqui perdemos tudo, sofá, armário, fogão, geladeira, máquina de lavar, tudo.
Eu trouxe minha mudança de lá de carrinho, em duas viagem. Cheguei em seis horas, mas cheguei. Esse local é da vila, nos arrumaram para deixar o museu aqui. Tentar trabalhar lá dos lado de lá, não tem lixeira, é na rua, mas os caminhão é mais rápido, aí não consegue trabalhar lá. Fica só sobra lá. O galpão é aqui consigo fazer minha carga e vender. Trabalhar numa zona rica de material, mas não tem quem buscar. Sofri por ter carga e ninguém querer buscar. Sou papeleiro, ninguém dá visibilidade, o preço é isso aqui. Se tem galpão, o preço é estabilizado, bom. O papeleiro nasceu pra sofrer, o sistema dá corda e fica, nem mais nem menos, é só, a gente trabalha com sobra dos governos e empresas. O que o caminhão não quer a gente pega e tenta viver daquilo. Meio chato e impossível. Tem dias que dá, mas tem dias que não dá. Tem dias pro lixo seco, nesses dias é piores. No dia do lixo orgânico, que é quando a gente pode entrar na lixeira, ali eu posso me contaminar, tiro uma pet, um material que possa aproveitar. Porque é um trabalho importante. A gente não pode julgar a pessoa que deixa ali, como eu vou querer condenar? Minha renda sai dali, do rejeito da sociedade.
No museu tinha sonho de achar um artista famoso. Ai guardei todo. Um artista tive na quarta série. Tive uma coleção de selos. O museu me levou para estudos que eu tive. Estudo para a Clara e o Wallace. Rolou um bocado de história no Museu. Criado para chamar a atenção das pessoas e tentar educar. A gente é papeleiro, tenho até a 4a série, tenho 15 anos de catar lixo. As pessoas me tratam como lixeiro, mas sou reciclador de lixo reciclável, quem cata lixo é o governo que ganha dinheiro com isso. Eles querem nos tirar, porque temos uma rentabilidade boa, fiz uma carteira pra tentar uma kombi, pra sair da sofrência. Papeleiro não passa dificuldade, ele tem limites diários, trabalhamos por centavos. Com o carrinho não consigo saciar as vontades dos meus filhos. Tem leis que me proíbem de circular e pegar o lixo da calçada. Eu vou ter que morrer papeleiro, sendo papeleiro não incomoda ninguém. Eu to sofrendo, sou um cavalinho, ninguém me incomoda. Quando eu tento melhorar minha renda eu não posso, tem o governo com os caminhão, tem política bagunçada que a gente não pode fazer nada. Peguei o museu e xriei para levar educação pras pessoas, vamos burlar as leis sem ser criminoso. A pessoa pode me doar lixo, assim eu posso pegar.
Foto: Alass Deriva (@derivajornalismo / @pimpmycarroca). Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1U5MrbsZagHEuWj5o3-qIAUz2Ch34nPdE&usp=drive_fs
O trabalho em cooperativa não é adequado para vocês. Como seriam ações para melhorar a vida dos catadores?
O único jeito é doação. Não quero me botar no meio da política, porque não temos ajuda. Era pro sistema dar luva, melhorar condição de trabalho, buscar meu sustento de lá. Não pergunta se estou bem ou não. Sair e trabalhar, só. Sabe as gaiolas de lixo orgânico? Lá eu posso pegar 1m³ de lixo dali. Eu posso me contaminar, posso pegar, mas o lixo seco na calçada eu não posso pegar. Tem um órgão conveniado que pode pegar, tudo é política, a gente tá largado com a corda no pescoço. Não posso usar a kombi porque tem uma logística que a gente não pode fazer. O governo não quer eu melhorar, carro melhor, vestir bem, quer me ver como papeleiro. Uns ajudam, uns reconhecem, mas hoje eu tenho prazer de trabalhar com a rua, mas eu não tenho mais firmeza de estar na rua hoje. Tudo envolve dinâmica. Os preços pra indústria, é tudo maravilhoso, pro papeleiro é trabalho por centavos, a gente fica na mão do sistema. Ele cata tudo pega volume e faz dinheiro, mas o papeleiro não. Trabalhar a semana toda pra botar 200 reais no bolso.
O museu eu criei porque não tenho como trabalhar com reciclagem. Larguei de mão, a renda é mínima. Tenho dois filhos, do papel não dá pra viver. Parti pra fotograrfia, me inscrevi em edital, explico o museu, trabalho em produtora, atendendo em bar, me reinventando porque na reciclagem não dá. É algo que eu não queria largar, queria trabalhar pro resto de vida, a vontade é grande, mas o sistema não dá opção de poder melhorar a renda. A gente tem que trabalhar em cooperativa. A gente tem que aceitar no que deu na partilha. Eu trabalho, é pouquinho, mas é minha renda. Vendo o poquinho que é, as vezes deu carga boa, achei algo que tem valor, é bingo, legal. Hoje em dia o próprio zelador, dono do prédio vende, faz a própria renda. Daqui a pouco a cidade volta ao normal, o papeleiro pega as sobra. Às vezes não vale a pena. Meu carrinho enche, tu recicla as coisas ficam desse tamaninho, e acaba ganhando 40-50 pila de um dia de serviço pesadão, as vezes não vale a pena. Tu trabalha o dia todo para manter a janta.
Por isso eu preferi trabalhar com a fotografia e tentar me reinventar para mudar de vida. Sonho em ser fotógrafo, trabalhar com vídeo, trabalhar com imagem. E tento,nada é certo ainda, mas é objetivo, é o sonho de poder melhorar e dar um futuro melhor pra minha família, pros meus filhos, uma condição melhor.
E aqui ó meu bebezinho. Minha rainha. Em prol da sustentabilidade deles, trabalhei com reciclagem, com carrinho.
Campanha de Solidariedade aos catadores do Rio Grande do Sul
Renda emergencial para os catadores e catadoras afetados pelas enchentes na região metropolitana de Porto Alegre e Vale do Sinos. Acesse a benfeitoria, onde está detalhado nosso plano de ação, que visa ajuda emergencial em duas etapas: https://benfeitoria.com/projeto/solidariedadeaoscatadoresdors
Esta iniciativa convoca a sociedade civil, empresas e o poder público a somarem esforços numa grande Campanha de Solidariedade aos Catadores e Catadoras do Rio Grande do Sul, promovida por uma Rede Colaborativa que está aberta para adesões. Os valores arrecadados serão destinados para as catadoras e catadores que estão sendo mapeadas pelas organizações.
Participam: Associação Nacional dos catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT), Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), União Nacional de Catadores e Catadoras de Material Recicláveis (Unicatadores), International Alliance of Waste Pickers/ Aliança Internacional de Catadores (IAWP), Pimp My Carroça, Frente parlamentar dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (FRECATA), Observatório da Reciclagem Inclusiva e Solidária (ORIS), Aliança Resíduo Zero Brasil (ARZB), Unicopas (União Nacional das Organizações Cooperativistas Solidárias), Fundação Avina e Oceana Brasil.