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Recicla essa lei, Porto Alegre!

Acesse aqui o Programa Todos Somos Porto Alegre

A partir de julho de 2024, as catadoras e catadores de materiais recicláveis não poderão mais circular com seus carrinhos de coleta pelas ruas de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Neste texto, vou te contar porque a lei que vem sendo sucessivamente adiada há 4 anos é inconstitucional e como esse projeto de eliminar carrinheiros das ruas de Porto Alegre é uma política higienista que institucionaliza o racismo ambiental, marginalizando ainda mais comunidades tradicionais que obtém sua renda da reciclagem e limpeza urbana.

A lei nº 10.531/2008 institui, no município de Porto Alegre, o programa de redução gradativa do número de veículos de tração animal e de veículos de tração humana e dá outras providências. A regulamentação da lei veio apenas em 2010, quando o prefeito Fogaça expediu os decretos 16.638 e 16.653. De 2013 a 2016, a implementação da lei ocorreu por meio do programa Todos Somos Porto Alegre (TSPOA), realizado pela Cooperativa Mãos Verdes. Projeto de lei escrito pelo então vereador Sebastião Melo em 2008, o programa teve sua conclusão entregue em 2016, quanto o político era vice-prefeito, e sua primeira multa aplicada com Melo como prefeito em 2022, cargo em que permanece até hoje.

O programa inteiro parte do pretexto de que tirar catadores de materiais recicláveis das ruas de Porto Alegre é “Uma solução para muitos problemas”, como introduz o então prefeito José Fortunati no documento Todos Somos Porto Alegre (TSPOA). Este livro registra em detalhes o fracasso de uma política pública que não trouxe qualquer benefício real para os catadores de materiais recicláveis individuais, para os catadores cooperados das unidades de triagem, e nem para a reciclagem de Porto Alegre. Pelo contrário, a taxa de reciclagem do município só diminuiu, caindo de 7,1% em 2008, para 4,5% em 2021.

Com o TSPOA, Porto Alegre foi a primeira e única capital brasileira a ter uma lei que impede os catadores de realizarem a coleta de materiais recicláveis com carroças (VTAs) e carrinhos (VTHs). Apesar da marginalização e preconceito ser presente em todo o Brasil, nenhuma capital além de Porto Alegre criminaliza por lei o trabalho da catação nas ruas. O município gaúcho, no entanto, abriu o precedente para inspirar políticas higienistas similares em outras cidades, como Balneário Camboriú (SC) e Vila Velha (ES).

O programa Todos Somos Porto Alegre foi dividido em três projetos, focadas em

  1. Catadores individuais: Busca ativa de carrinheiros e carroceiros com encaminhamento para outras oportunidades de emprego;
  2. Unidades de triagem: Transformação de unidades de triagem em unidades de empreendedorismo popular;
  3. Sociedade civil: Educação ambiental para aumentar a consciência sobre a reciclagem.

Os três tiveram resultados insatisfatórios. Utilizando metodologias de engenharia de produção, o programa foi implementado pela Cooperativa Mãos Verdes, que tinha como diretor Léo Voigt, o atual Secretário do Desenvolvimento Social de Porto Alegre.

Projeto 1: Busca ativa de catadores de materiais recicláveis e encaminhamento para outras oportunidades de emprego

Estima-se que existam entre 6 e 10 mil catadores de materiais recicláveis individuais em Porto Alegre. Durante a busca ativa, foram contatados 2.448 catadores, e apenas 1.650 receberam monitoramento ou algum benefício do programa até junho de 2016. Para os tomadores de decisão do TSPOA, a catação nas ruas nunca foi vista como um trabalho possível, oferecendo aos carrinheiros apenas duas opções: a criminalização ou o abandono da profissão.

“Da necessidade de tirarmos carroceiros e carrinheiros das ruas, partimos para uma solução que oferece alternativas econômicas e sociais, combinadas com o necessário cuidado com o meio ambiente. Ao invés de uma pretensa ‘higienização social’, optamos pela valorização da vida e da dignidade, oferecendo alternativas de sustento, através dos centros de reciclagem, de cursos e de uma ajuda financeira para a entrega de carrinho, carroças e animais, que são tratados também com o devido cuidado.” - José Fortunati, ex-Prefeito de Porto Alegre.

“Outra distinção importante a se fazer é a de que há dois extratos de catadores. Aqueles que estão dentro das Unidades de Triagem, em certa medida, já possuem rotina, abrigo e vínculo, além de trabalhar produtivamente em grupo, o que os coloca em circunstâncias distintas do catador de rua, este um ser fragmentário, que não é grupal ou gregário e tende cada vez mais a se deslocar de forma marginal, oficiosa na cidade, totalmente desprotegido.” - Léo Voigt, ex-Diretor da Cooperativa Mãos Verdes e atual Secretário do Desenvolvimento Social de Porto Alegre.

“Quem defende a manutenção das atividades dos carroceiros e carrinheiros não considera que eles vivem à margem da sociedade, discriminados, sem garantias trabalhistas e de acesso a serviços básicos, expostos a riscos e muitas vezes reféns de um sistema de exploração.” - Denise de Souza Costa, coordenadora-geral do programa Todos Somos Porto Alegre.

Estima-se que mais de 800 mil pessoas tenham a catação de materiais recicláveis como principal fonte de renda no Brasil. A catação é reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações (5912-05 - Catador de Material Reciclável), e dentre as atividades previstas na CBO, estão:

  • Puxar carroça, carrinho;
  • Conduzir carroça de tração animal;
  • Procurar material nas caçambas de rua;
  • Conversar com a população de porta em porta;
  • Prestar informações sobre coleta seletiva e materiais recicláveis.

No entanto, o programa Todos Somos Porto Alegre nunca se propôs a incluir por meio do trabalho da catação os catadores de materiais recicláveis individuais. Como disse José Fortunati, desde o início a necessidade era tirá-los das ruas. Para isso, ofereciam R$200 pelo carrinho, instrumento de trabalho do carrinheiro. Não houve quase adesão. Dos 1650 catadores acompanhados pelo programa, 425 entregaram sua carroça (de tração animal) ou cavalo, mas apenas 12 entregaram seus carrinhos.

Roque Grazziola, secretário-geral da Fundação Solidariedade, constata: “Poucas pessoas optaram pela indenização da carroça e do cavalo. Os trabalhadores argumentaram que os R$200 pagos pela indenização de um carrinho representavam o dinheiro ganho em uma semana.”

O programa não leva em consideração o mais importante: Os catadores de materiais recicláveis são sujeitos dotados de consciência, cultura, autonomia e vontade próprias. Catadores de materiais recicláveis individuais são, convenientemente, tratados como crianças ou vulneráveis, sem o direito de decidir sobre suas vidas. E isso não sou nem eu falando, é o coordenador geral do projeto 1, que realizou a busca ativa de catadores individuais. O Alceu Terra Nascimento, atual diretor da Cooperativa Mãos Verdes, confirmou as limitações do programa:

“Reconhecer os limites e paradoxos de nossa ação é parte do processo de aprendizagem e da busca de uma política pública mais abrangente e mais efetiva. Significa reconhecer que o Programa não dá conta de toda a realidade e que temos novas fronteiras a percorrer. Talvez uma delas seja reconhecer o catador ambulante menos como um sujeito vulnerável, alvo da política da assistência social, e mais como um agente econômico desta cadeia de valor, alvo de processos de negociação, enquadramento e melhoria contínua.”

Diversas vezes, é manifestado o interesse de que a política pública se tornasse permanente de alguma forma, ou que houvesse desdobramentos possíveis. No entanto, os últimos contratos da Prefeitura com profissionais contratados para o trabalho de busca-ativa de catadores/as e recicladores/as se encerraram ainda em novembro de 2016, apesar da prorrogação da lei para março de 2017, deixando um evidente vácuo temporal, como atesta o relatório do Grupo de Assessoria Justiça Popular da UFRGS.

Projeto 2: Transformar as UTs em unidades de empreendedorismo popular

Léo Voigt abre o capítulo do projeto 2 expondo sua visão sobre as unidades de triagem:

“Não tenho dúvida de que o objetivo é fazer com que estes arranjos de fundo de quintal - denominados justamente de galpões, porque são arremedos de puxadinhos - se tornem centrais de processamento sistemistas de materiais da coleta pública. No dia em que isso, de fato, acontecer, o processo de reciclagem terá um ganho extraordinário de qualidade com expressiva redução de custo, propiciando que se pague, inclusive, uma remuneração melhor às UTs.”

Neste momento, em dezembro de 2023, a Campanha Coleta Seletiva Viva POA está reivindicando melhores condições de trabalho e termos de serviço para as 17 UTs de catadoras e catadores, que recebem os resíduos da coleta seletiva de Porto Alegre. As reivindicações são: 

●     o pagamento adequado pelo contrato de serviços prestados, considerando que o contrato atual firmado não cobre os custos fixos das Unidades de Triagem;

●     melhorias e investimentos na infraestrutura das unidades, considerando as dificuldades de operação e que a maioria das unidades são do município;

●     valorização e protagonismo dos catadores e catadoras de materiais recicláveis pelo importante serviço prestado pelas Unidades de Triagem de Porto Alegre e economia gerada ao município pelo desvio dos resíduos recicláveis dos aterros sanitários.

A lei nº 10.531 é inconstitucional

Em setembro de 2016, o Grupo de Assessoria Justiça Popular da UFRGS (GAJUP) enviou à DPE-RS manifestação defendendo a inconstitucionalidade da Lei 10.531, por, essencialmente, esta entrar em competência legislativa da União (inconstitucionalidade formal) e por afetar o livre exercício de profissão e o direito ao trabalho de catadores/as e recicladores/as (inconstitucionalidade material).

Há um precedente para a inconstitucionalidade dessa proibição em Balneário Camboriú, Santa Catarina. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) declarou inconstitucional o Decreto n.º 10.578 do Prefeito Fabrício Oliveira, que proibia os catadores de materiais recicláveis de trabalhar na cidade, além de não respeitar a liberdade econômica e a livre iniciativa desses profissionais.

Em 21 de outubro de 2021, o prefeito expediu o Decreto N.º 10.578, regulamentando o artigo 3º da Lei Municipal N.º 4.438, de 14 de agosto de 2020. O artigo 3º da Lei determinava que a Prefeitura fiscalizasse e punisse qualquer pessoa que coletasse material reciclável, dando exclusividade à concessionária pública (Ambiental) e, na prática, proibindo a livre iniciativa e o trabalho dos catadores. Por meio do Decreto, em seu artigo 3º, o prefeito reforçou a proibição dos catadores exercerem sua profissão no município e, no artigo 4º, criou multa a ser aplicada àqueles que seguissem trabalhando.

“Realizamos inúmeras tentativas de diálogo com diversos setores do governo para organizar, regulamentar e modernizar as normas e o trabalho dos catadores. Protocolamos um decreto legislativo para sustar os atos do prefeito, o que foi discutido também em uma reunião pública, mas a base do governo fez manobras e o decreto não chegou a ser votado. Só nos restou protocolar a ação junto ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que finalmente declarou os atos do prefeito como inconstitucionais”, disse o vereador André Meirinho.

Cabe destacar que o município de Balneário Camboriú possui a Lei N.º 2.802, de 6 de março de 2008, que regulamenta e organiza o trabalho dos profissionais catadores de materiais recicláveis. Essa norma busca proteger tanto os trabalhadores quanto a comunidade, uma vez que contribui para que os verdadeiros profissionais sejam devidamente reconhecidos e possam exercer sua profissão. Contudo, a Lei não vem sendo seguida pela Prefeitura, que não implementa todas as diretrizes de organização dos catadores, como a identificação e uniformização de todos os trabalhadores.

No julgamento, o Desembargador relator acatou os argumentos apresentados pelos vereadores, reconhecendo a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei Municipal N.º 4.438 e dos artigos 3º e 4º do Decreto Municipal N.º 10.578, expedido pelo prefeito de Balneário Camboriú. Dessa forma, o relator entendeu que o artigo 3º da Lei e os artigos 3º e 4º do Decreto são inconstitucionais por proibirem o direito desses profissionais ao trabalho (artigo 5º, inciso XIII da Constituição Federal), violarem o princípio da legalidade (artigo 37 da Constituição Federal), o princípio da livre iniciativa (artigos 1º, caput e inciso V, 134 e 135, § 4º, da Constituição do Estado de Santa Catarina) e invadir a competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (artigo 22, inciso XI da Constituição Federal).

O Ministério Público do Estado de Santa Catarina, intimado pelo Desembargador para se manifestar no processo, também deu parecer favorável à argumentação dos vereadores, pedindo para que fosse reconhecida a inconstitucionalidade da proibição dos catadores trabalharem. Agora, os trabalhadores e os vereadores aguardam que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina publique o acórdão com a íntegra da decisão para saberem mais detalhes sobre a partir de quando a decisão passará a ter efeitos. A Prefeitura ainda poderá recorrer da decisão.

[Informações extraídas do Portal BC Notícias]

Recicla essa lei, Porto Alegre!

Chega de prorrogar o prazo de vigência da lei nº 10.531. Essa lei deve ser declarada inconstitucional e suas consequências, como acusar catadores de materiais recicláveis individuais de estarem roubando lixo, punindo-os com multas de até R$7 mil, devem ser extintas. A proibição já foi adiada 4 vezes, e está indo para seu quinto adiamento neste final de 2023.

Isso demonstra a incapacidade do poder público, tanto do poder executivo quanto legislativo, em encontrar uma alternativa viável à lei e se comprometer com a causa dos catadores de materiais recicláveis individuais. Ainda é possível ler um absurdo desse do Secretário Social da Capital, Léo Voigt, no quarto adiamento, de 2022:

“Nós temos um ambicioso programa de formação e capacitação para essa população ingressar em alguma forma de trabalho formal ou protegido. Esse programa ainda está em formação — explica o secretário de Desenvolvimento Social da Capital, Léo Voigt, salientando que o município trabalha nessa estratégia de geração de oportunidade para os carrinheiros, inclusive com captação de financiamento internacional.”

Depois de mais de 4 anos de implementação do programa Todos Somos Porto Alegre como diretor da cooperativa Mãos Verdes, o secretário parece não ter aprendido nada. Pelo contrário, mesmo tendo se aprofundado na realidade do mercado informal da catação, fecha os olhos para questões elementares que vão além de tirar os carrinheiros das ruas, escolhendo manter o mesmo posicionamento de 10 anos atrás. Veja como o secretário encerra o balanço qualitativo do TSPOA:

“O carrinheiro tem o perfil de pessoa semiescravizada pelo sujeito que loca o carrinho para ele. Provavelmente por essa razão, as metodologias de acesso a direitos e a oferta de alternativas de renda se mostraram pouco atraentes para ele, o que fez com que o processo de inclusão, nesse caso, ficasse paralisado ou enfraquecido e apresentasse resultados bem aquém do que estimamos. [...] Em muitos casos, a linguagem de formação profissional se mostrou inócua, o que nos leva a refletir com mais profundidade a respeito de sua condição de vida. Afinal, se ele tivesse mesmo alguma chance no mundo formal do trabalho, há muito tempo já não seria carrinheiro.

Outro equívoco expressa-se na convicção de que os carrinheiros sejam sujeitos autônomos, com liberdade para comercializar os materiais recolhidos nas ruas com quem bem entendam, quando, na verdade, são dependentes de um atravessador, que compra os resíduos e, em muitos casos, até aluga os carrinhos por eles utilizados. Portanto, os carrinheiros fazem parte de um sistema organizado. Não percebemos a existência destes arranjos produtivos informais, que se expandem com rapidez em grande parte da periferia da cidade, principalmente em áreas novas e extremamente pobres. Em consequência, frente a essa realidade, não tínhamos propostas alternativas suficientes e inovadoras, sustentáveis e com resultados no curto prazo para ofertar a estes catadores de rua.”

Seria possível tipificar como prevaricação identificar a realização de um trabalho análogo à escravidão e sentar em cima do problema? Passados 7 anos, a prefeitura segue sem propostas alternativas, suficientes e inovadoras, sustentáveis e com resultados no curto prazo! Que surpresa, né? O vice-prefeito da época, Sebastião Melo, hoje é prefeito, o diretor da cooperativa hoje é secretário de desenvolvimento social e ainda não há uma alternativa mais interessante do que criminalizar e/ou transferir catadores para outros trabalhos. Sucesso de política pública dessa equipe!

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